Tinha nove anos quando se deparou com eles pela primeira vez. Não eram propriamente de grafite, mas adotariam sua textura alguns minutos depois. Na verdade, eram de um papel fotográfico excelente, que os conservava assustadoramente vivos, sob uma pesada mortalha de agentes químicos. Foram fixados ali no passado e eram então revelados à pequena Perla que, movida por desconhecida ânsia, dirigiu-se ao quarto, apanhou uma folha e, com um lápis, esboçou o rosto que os comportava.
Numa fria tarde de julho, quando da reunião de alguns parentes em sua casa, da solidão postada em pé na varanda, surgiu-lhe o desejo da partilha. Correu até seu pequeno baú e apanhou o esboço. A reação que sobreveio a cada um dos elegantes senhores que bebericavam o doce chá de ervas foi a mesma: assombro.
Perla possuía um dom e, pela incapacidade de reconhecê-lo quando menina, o tornava público com a corajosa inocência dos que desafiam os detentores da ignorância e da inveja. Quando curvada sobre o papel, tendo sempre ao lado uma fotografia, nem se dava conta de que a imagem se transportava de uma superfície a outra com uma rapidez e precisão impressionantes. Quase não sentia o lápis entre os dedos. Quase não se sentia.
Quando já acumulava dezenas de retratos, inspirados por fotografias apanhadas ao acaso de livros, jornais e revistas, inquietou-se diante da pasma indagação de sua tia Cora: "Mas, querida... por que só retratas os mortos?". Não respondeu. Não sabia. Sequer cogitara essa mórbida analogia. Passou-lhe pela cabeça, simplesmente, que, de alguma forma, aquilo não era verdade.
O passar dos anos permitiu-lhe fermentar, nos limites de sua lógica, a convicção que precisava emprestar àquela resposta que não fora capaz de dar e que, numa outra ocasião, irromperia o ar morno do outono com uma causticidade que constrangeria aquela mesma tia, em conversa travada por ambas no desbotado gramado da praça Flaubert.
Recostada no tronco de uma árvore seca, Perla fez sair, com essa mesma propriedade, a pergunta de sua garganta jovem: "Por que imaginas que só retrato os mortos?". Apanhada de surpresa, Cora pensou um pouco para lhe responder: "Não imagino. Todos aqueles retratos que faz e que guarda no velho baú, são de pessoas já falecidas". Segura de si, Perla tentou se explicar: "Sabes que não é verdade! Desenho rostos a partir de fotografias e no momento em que aquelas pessoas foram fotografadas, estavam vivas, portanto não se tratam de retratos de pessoas mortas, não senhora!". Um tanto confusa, Cora quis saber: "Mas por que diabos está falando disso agora, menina?". Perla então emprestou à sua voz a capacidade de condução elétrica de um metal: "Porque queria certificar-me de que também você se engana quanto à representação da vida pela arte e se engana, sobretudo, defendendo uma idéia tão romântica da morte!". Já tensa, buscando nas roupas um lugar onde esconder as mãos, Cora buscou no improviso uma saída possível: "E que idéia tão romântica é essa que defendo?". Perla então se limitou a dizer: "Essa, de que a vida fantasia-se de morte e não o contrário".
Simone Maia
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